O bioma que abastece 8 das 12 grandes bacias hidrográficas do país está perdendo seus rios. Um estudo inédito divulgado nessa segunda-feira (23/6) revela que o Cerrado já perdeu 27% da superfície de água em duas décadas. A principal razão? O avanço da soja, do desmatamento e as mudanças no regime de chuvas. Para quem vive da terra, como os quilombolas Kalunga, os efeitos da seca já são parte do cotidiano — e o futuro, uma grande incerteza.
O levantamento feito ao longo de 12 meses revelou o que cientistas e moradores do Cerrado já sentiam no cotidiano. O projeto Cerrado – O elo sagrado das Águas do Brasil, conduzido pela Ambiental Media com base em dados da Agência Nacional de Águas e do MapBiomas, identificou a redução da superfície aquática no bioma entre os anos 1985 e 2023. E, dessa perda, a maior parte ocorre nas regiões onde o agronegócio mais avança — como no MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
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O engenheiro florestal Yuri Botelho Salmona, colaborador científico da análise, diz que dois grandes fatores que explicam a redução hídrica.
O primeiro deles é o desmatamento acelerado, especialmente para a produção de grãos irrigados como a soja — uma das maiores consumidoras de água do país. Em seguida, as mudanças climáticas, que alteram o regime de chuvas: hoje, chove menos e por períodos mais curtos.
“O Cerrado é o coração que pulsa a água para o país. Ele abastece oito das doze principais bacias do Brasil, incluindo o São Francisco, Araguaia-Tocantins, Paraná e a bacia Amazônica. Quando esse coração seca, o país inteiro sente”, afirma. “Ao invés de nos adaptarmos à crise climática, estamos aprofundando seus efeitos. O desmatamento amplia ainda mais o impacto das mudanças do clima, principalmente na água. É urgente restaurar e proteger o Cerrado enquanto ainda há tempo”, diz.
Crise hídrica no Cerrado
O Cerrado perdeu 27% da superfície de água nos últimos 20 anos.
Os principais culpados são o desmatamento para a produção de grãos irrigados e a redução nos períodos chuvosos.
Comunidades tradicionais já vivem a crise hídrica na prática.
Especialista alerta que o problema afeta todo o Brasil.
A realidade no território Kalunga
A comunicadora popular Alciléia Torres, liderança Kalunga do Vão de Almas, na região da Chapada dos Veadeiros (GO), conta que a crise hídrica já afeta sua comunidade.
“A gente mora perto do menor rio da região, o Pedra Preta. Antigamente, ele enchia e ficava meses com água. Hoje, chove um pouquinho e logo seca. As roças já não produzem como antes: a gente planta e a planta morre. Fica tudo perdido”, lamenta.
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Comunidade Kalunga, situada na Chapada dos Veadeiros, Cavalcante (GO)
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Rio Pedra Preta, em Cavalcante (GO) – próximo a comunidade Kalunga
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Comunidade Kalunga vista do alto, situada no município de Cavalcante – Chapada dos Veadeiros (GO)
Fotos: Alvaní Torres
Mesmo preservando mais de 80% da vegetação nativa, os Kalunga sofrem com a seca. A contradição, para Alciléia, é um sinal claro de injustiça ambiental.
“Nós somos os guardiões do Cerrado. Conservamos a floresta em pé, mas somos os primeiros a sentir os impactos. Mesmo nas regiões onde o Cerrado está mais protegido, a água já está faltando”, diz.
Ela conta que, entre 2017 e 2019, os Kalunga viveram três anos seguidos de seca extrema e precisaram buscar água em outro rio. Hoje, córregos como a Grotinha, que antes duravam meses cheios, já secam com uma única estiagem curta.
Além da escassez, a principal fonte de renda da comunidade — a agricultura familiar e o extrativismo — está comprometida. Sem água, as lavouras falham, e o sustento das famílias entra em risco.
“O que mais preocupa hoje é o futuro. Será que as nossas próximas gerações vão ter acesso à água? A gente sempre cuidou da terra, mas isso não tem nos protegido. Os impactos da seca chegaram e chegaram primeiro aqui”, afirma Alciléia.
População urbana também será afetada
O alerta é claro: mesmo quem vive longe do Cerrado depende dele. Salmona reforça que a água que sai da torneira das grandes cidades passa, em muitos casos, por nascentes e lençóis do Cerrado.
“Se tem água no seu chuveiro, agradeça ao Cerrado. Preservá-lo é garantir segurança hídrica para todos”, explica.
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