Pesquisadores da Universidade de Cambridge acreditam ter desvendado o mistério entorno de um poema medieval de 800 anos. Os estudiosos argumentam que a obra “Song of Wade” (Canção de Wade) é, na verdade, um romance de cavalaria, não um conto épico com monstros mágicos.
Essa história ficou popular na Idade Média e reverberou por séculos. O escritor Geoffrey Chaucer (1343-1400), conhecido como pai da literatura inglesa, citou Wade em suas obras, deixando referências que intrigaram os estudiosos de seus livros no passar dos séculos.
O texto examinado na atual pesquisa, publicada na revista The Review of English Studies, foi encontrado em 1896, pelo pesquisador M.R. James. Ele buscava por sermões em latim quando achou o Humiliamini , um sermão com trechos em inglês.
James então chamou seu amigo Israel Gollancz, estudioso de literatura inglesa, para examinar o texto. Juntos eles descobriram se tratar dos versos de um poema perdido do século XII que chamaram de Canção de Wade. A dupla traduziu o sermão e prometeu mais comentários sobre a obra, algo que nunca aconteceu.
Estudiosos acreditavam que poema era uma fantasia épica
No decorrer de quase 130 anos, outros estudiosos se dedicaram a entender a conexão entre o sermão e o poema. Dentre os versos, aparecem citações a elfos (“elves”, em inglês) e duendes (“sprites”), o que classificava a obra como uma fantasia épica com criaturas mágicas.
Porém, as citações de Chaucer a Wade eram totalmente diferentes. O autor classificava o personagem como uma figura da tradição dos romances de cavalaria, histórias ricas em aventuras, mas em cenários realistas.
Essa confusão com os textos atravessou gerações de acadêmicos. Em 1936, o pesquisador Jack A. W. Bennett definiu o dilema: “provavelmente não há ponto crucial mais conhecido em Chaucer do que a história de Wade”, trecho citado pelos pesquisadores no estudo.
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Mistério pode ser um erro de transcrição, dizem pesquisadores
Agora, os doutores James Wade e Seb Falk examinaram o texto e acreditam ter encontrado a resposta para o mistério. A dupla analisou cada letra e símbolo nas páginas do sermão.
Foi desse estudo minucioso que a dupla suspeitou que a confusão de séculos pudesse ser resultado de uma transcrição errada. Os pesquisadores acreditam que o escriba que copiou a obra original poderia não ser familiarizado com o inglês médio — a língua falada e escrita na Inglaterra de 1100 a 1500 d.C.
Segundo o estudo, as palavras “elves” (elfos) e “sprites” (duendes) seriam, na verdade, “wolves” (lobos) e “sea snakes” (cobras marinhas). Essa possível correção altera o trecho:
Original: “Some are elves and some are adders; some are sprites that dwell by waters” (alguns são elfos e alguns são víboras; alguns são espíritos que vivem perto das águas).
Versão dos pesquisadores: “Some are wolves and some are adders; some are sea-snakes that dwell by the water” (alguns são lobos e alguns são víboras; alguns são cobras marinhas que vivem perto das águas).
Embora apenas algumas letras tenham sido alteradas nas palavras em inglês, o sentido do texto mudou drasticamente. “Não estamos aqui para dizer que as pessoas que interpretaram o assunto de forma diferente antes foram estúpidas por não perceberem, mas acho que, ao olhar de fora para dentro, obtivemos uma perspectiva diferente”, disse Falk em um comunicado.
Os três versos da Canção de Wade carregaram um mistério que intrigou os pesquisadores da obra de Chaucer por séculos. (Imagem: Universidade de Cambridge / Divulgação)
Escritor do sermão teria usado um “meme” para conquistar o público
A mudança de criaturas mágicas para seres da realidade sugere que o pregador que escreveu o sermão, na verdade, estava usando os animais como metáforas para o comportamento e os vícios humanos. Essa leitura não só resolve o mistério de 130 anos do trecho encontrado por James, como explica as citações de Chaucer à obra como um romance de cavalaria.
O texto completo diz que os homens poderosos se tornam como lobos porque roubam o que não os pertence. E compara as pessoas enganosas às víboras ou cobras marinhas. Outros animais, como leões e raposas, também são usados de exemplo pelo pregador.
Os pesquisadores especulam que o sermão foi escrito pelo poeta e abade inglês Alexander Neckam (1157–1217). A dupla analisou o estilo de escrita e o contexto para chegar a essa constatação.
O uso de um poema da cultura popular pelo clérigo foi visto pelos estudiosos como uma forma de alcançar audiências maiores. “A maneira como o poema é citado no sermão como um meme — algo que era amplamente compreendido — nos diz algo sobre o quão onipresente ele era”, comentou o pesquisador.
Embora futuras pesquisas possam contestar a nova tradução e interpretação dos autores, o estudo mostra como uma leitura renovada de obras antigas pode resolver enigmas que persistem há séculos na história da ciência.
“Agora, obviamente, temos apenas três versos deste poema presumivelmente muito mais longo e, portanto, não podemos fingir que o compreendemos por completo. Mas, acho que podemos entendê-lo muito melhor agora do que nunca”, concluiu Falk.
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