Ensinar mecânica quântica no ensino médio ainda é um desafio em boa parte das escolas brasileiras. Enquanto o currículo segue centrado na física clássica do século 19, os conteúdos da chamada física moderna — que explicam as bases de tecnologias atuais como lasers, microprocessadores e portas automáticas — costumam ser deixados de lado. Essa lacuna, apontam os autores, afasta os estudantes da realidade tecnológica que os cerca.
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Foi para enfrentar essa distância entre teoria e cotidiano que os físicos Rendisley Aristóteles e Ronni Amorim, da Universidade de Brasília (UnB), desenvolveram o projeto Elétron no Mundo Quântico. A proposta une ciência e arte ao utilizar cartuns e histórias em quadrinhos como ferramenta de ensino.
O material foi aplicado em turmas do ensino médio e demonstrou resultados expressivos: os alunos que estudaram com os quadrinhos tiveram desempenho até 15% superior em testes sobre conceitos quânticos, em comparação aos que tiveram aulas tradicionais.
Cartuns criados para o projeto Elétron no Mundo Quântico aproximam os estudantes de temas complexos da física moderna
Humor como porta de entrada para a ciência
Segundo o professor Aristóteles, o ponto de partida foi a constatação de que o formato convencional de aula, baseado apenas em fórmulas e cálculos, reduz o interesse dos alunos.
Ele explica que o uso de cartuns e histórias em quadrinhos permitiu criar situações cotidianas e bem-humoradas, nas quais os fenômenos da mecânica quântica ganham vida por meio de personagens e metáforas visuais.
Um dos exemplos é o cartum em que um “ônibus de elétrons” representa o princípio da exclusão de Pauli — regra segundo a qual duas partículas não podem ocupar o mesmo estado quântico. A tirinha desperta riso e curiosidade, servindo como gancho para que os alunos discutam e compreendam o conceito formal.
Em uma das tirinhas, um “ônibus de elétrons” ilustra o princípio da exclusão de Pauli
Para o professor, o cartum atua como mediador entre o conhecimento cotidiano e o científico: primeiro o aluno ri, estranha e tenta interpretar a história; depois, o professor conduz a formalização teórica. Esse processo — chamado de “problematização didática” — estimula o pensamento crítico e o diálogo em sala, princípios centrais da pedagogia freireana.
“Os quadrinhos não substituem a aula, mas a preparam. Eles despertam o interesse e criam um canal visual que ajuda o estudante a construir sentido antes da explicação formal”, explica Aristóteles.
Ciência e arte de mãos dadas
O projeto nasceu durante o mestrado do físico, orientado pelo professor Ronni Amorim, da Faculdade de Ciência e Tecnologia em Engenharia da UnB. Amorim ressalta que a proposta de transformar fenômenos quânticos em tirinhas foi pensada para tornar a disciplina mais acessível e prazerosa.
“Costumo dizer que ciência é arte. A arte aproxima o público dos conhecimentos científicos, mesmo quando o conceito não é abordado em toda sua profundidade. O importante é desmistificar e mostrar que esses temas são parte do nosso cotidiano”, afirma o professor.
Ele destaca ainda que a iniciativa não é apenas um experimento didático, mas uma forma de repensar o ensino de ciências. “Vale a pena investir em metodologias alternativas, especialmente na física, que costuma ser vista como uma disciplina difícil. Os resultados mostraram que a linguagem visual pode ser uma aliada poderosa”, explica.
A HQ Elétron no Mundo Quântico foi criada por professores e estudantes da UnB como material didático para o ensino médio
O olhar do ilustrador
Os desenhos que deram vida à revista Elétron no Mundo Quântico foram feitos por Roberto Antônio Ferreira, 39 anos, funcionário de serviços gerais e colecionador de HQs desde os anos 1990. Ele conta que o trabalho nasceu a partir das ideias de roteiro elaboradas por Aristóteles e Amorim, e que o processo foi “muito prazeroso”.
“Criamos o personagem principal, o menino Elétron, para guiar as histórias. A página de abertura é a mais marcante, porque precisa chamar a atenção de quem lê. Ver os alunos rindo, curiosos e perguntando se aquilo realmente existia na física foi gratificante”, diz o ilustrador.
Para Ferreira, a arte funciona como uma ponte entre o aluno e o conteúdo. “Quadrinho é narrativa, personagem e humor — e isso quebra a barreira do medo diante de um conceito difícil. A arte não simplifica a ponto de distorcer, mas aproxima o estudante emocionalmente do tema. Sem curiosidade, não tem aprendizagem”, ensina.
Resultados e segunda etapa
O estudo comparou quatro turmas de 3º ano do ensino médio em duas escolas — uma pública e uma particular. As turmas que receberam o gibi tiveram um salto médio de 20 pontos percentuais no desempenho em questões conceituais sobre mecânica quântica, enquanto as turmas que assistiram apenas às aulas tradicionais evoluíram de forma mais modesta.
Além dos dados quantitativos, os depoimentos dos alunos mostraram entusiasmo e maior interesse pela física. Muitos afirmaram que, pela primeira vez, se sentiram à vontade para discutir temas como superposição de estados, efeito túnel e princípio da incerteza.
Para os autores, o sucesso do projeto mostra que o ensino de física pode e deve dialogar com linguagens contemporâneas. “Queremos expandir a proposta para outros conteúdos da física moderna — como buracos negros e supercondutividade — e até para outras disciplinas”, adianta Amorim.
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