Clima e ansiedade ambiental têm afetado decisão de ter filhos. Entenda

A crise climática está atravessando não apenas ecossistemas e economias, mas também decisões íntimas — entre elas, a de ter ou não filhos. O medo de colocar uma criança em um mundo instável, com desastres ambientais cada vez mais frequentes e incertezas sociais e econômicas vem moldando o comportamento das novas gerações.

Esse fenômeno, chamado de ansiedade ambiental ou ecoansiedade, é estudado por psicólogos e especialistas em reprodução humana e já influencia o planejamento familiar de muitos jovens. A preocupação com o futuro, antes restrita à esfera coletiva, agora afeta também as escolhas individuais.

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A especialista em comunicação Mariana Blessa, 36 anos, é uma das mulheres que decidiram não engravidar — uma decisão que ela define como consciente e coerente com a realidade que enxerga.

O futuro climático não está dissociado da forma como vivemos. Enquanto a natureza for tratada como um recurso e não como parte da vida, é impossível imaginar um futuro de coexistência”, reflete.

Mariana explica que sua escolha nasceu de uma soma de fatores: a crise ambiental, o modelo econômico que agrava o problema e as desigualdades sociais. “Uma criança que nasça hoje viverá em um cenário muito mais hostil do que o que encontrei”, afirma.

Mariana Blessa decidiu não engravidar por acreditar que o planeta vive um colapso ambiental e social

Aos 36 anos, ela ponderou entre congelar óvulos e planejar uma gestação ou aceitar que a maternidade não faz mais parte de seus planos. “Quando coloquei tudo na balança, percebi que não fazia sentido iniciar nenhum processo. Essa é a escolha que faz sentido para mim hoje”, diz.

Clima de incerteza afeta o desejo de ter filhos

De acordo com a psicóloga Juliana Roberto dos Santos, do Instituto Ideia Fértil de Saúde Reprodutiva, em São Paulo, relatos como o de Mariana são cada vez mais comuns. Jovens, mesmo sem planos imediatos de formar uma família, demonstram preocupação com o tipo de mundo em que seus futuros filhos viveriam.

Há um sentimento coletivo de desesperança. Muitos não confiam nas autoridades e acreditam que as ações de enfrentamento à crise climática são insuficientes”, explica Juliana. Essa percepção de instabilidade global, segundo ela, interfere diretamente nas decisões sobre maternidade e paternidade.

A psicóloga ressalta que a ansiedade ambiental não se restringe ao medo do aquecimento global, mas à sensação de impotência diante de problemas que parecem maiores do que o indivíduo. Isso leva muitas pessoas a adiar a ideia de ter filhos até que exista um cenário mais seguro — emocional e ambientalmente.

De acordo com a especialista, a psicologia pode ajudar a transformar essa angústia em reflexão e planejamento, porque o papel do terapeuta é abrir espaço para que o paciente possa elaborar seus medos, enxergar possibilidades e pensar em um futuro que possa mudar.

Sustentabilidade reprodutiva: um novo olhar sobre o futuro

Para o ginecologista e especialista em reprodução humana Emerson Cordts, o impacto da crise climática já aparece, de forma indireta, nas clínicas de fertilidade. Segundo ele, o medo do futuro e as mudanças ambientais alteram o perfil de quem busca tratamento.

“Muitos casais estão mais conscientes dos desafios globais, mas também mais inseguros. Isso faz com que adiem a decisão de ter filhos e procurem ajuda em idades mais avançadas”, observa o médico.

Ele reforça que o conceito de sustentabilidade reprodutiva — pensar o futuro da fertilidade com responsabilidade social e ambiental — é essencial para lidar com esse novo cenário.

Cordts alerta ainda que a queda da fecundidade já é uma tendência global. Segundo ele, as pessoas vivem mais e tem menos filhos. E essa equação impacta a economia, a força de trabalho e o cuidado com os idosos. Ao mesmo tempo, mostra que as pessoas estão repensando o que significa gerar uma vida em tempos de incerteza.

Quando a maternidade deixa de ser o centro

No caso de Mariana, a decisão de não ter filhos não nasceu do medo, mas da coerência com sua visão de mundo. Ela busca viver de forma mais sustentável, com escolhas de consumo conscientes, alimentação orgânica e redução de lixo.

“Não ter o desejo de engravidar, para mim, já é uma forma de contribuir. Não precisamos de mais humanos no mundo”, diz.

Especialistas afirmam que decisões como essa refletem uma mudança cultural e psicológica: a maternidade deixa de ser um caminho inevitável e passa a ser uma escolha ética, influenciada por fatores ambientais, emocionais e sociais.

Juliana observa que o aumento desses casos é também um sinal de autonomia. “A decisão de não gerar filhos pode representar maturidade emocional e consciência social. O importante é que seja feita de forma livre e informada, sem culpa nem pressão”, afirma.

O medo e a responsabilidade

O avanço das mudanças climáticas, os eventos extremos e a percepção de que o planeta caminha para um ponto crítico estão, aos poucos, redefinindo o conceito de família. Para muitos jovens, a responsabilidade de criar uma nova vida vai além da biologia: envolve pensar na sustentabilidade do mundo em que essa vida vai crescer.

O desafio, apontam os especialistas, é encontrar equilíbrio entre o medo e a esperança — entre reconhecer os riscos e seguir acreditando que há futuro possível.

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