A pergunta que muitos se fazem revela uma confusão conceitual importante, ainda que estruturada na ideia de que doença, transtorno psicológico e autismo sejam sinônimos. Mas a resposta tem mais nuances e controvérsias do que parece. Se cientistas fazem descobertas que indicam múltiplas origens para o autismo, também precisamos repensar como o classificamos. Além disso, entender como o autismo se relaciona com características como hiperfoco ajuda a diferenciar mitos de evidências científicas.
Embora formalmente o Transtorno do Espectro Autista (TEA) seja listado em manuais diagnósticos como o DSM-5 e a CID-11, especialistas em neurociência e neurodiversidade argumentam com dados contundentes que o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento, não uma doença no sentido clássico.
O termo “doença” carrega conotação de algo que precisa ser curado, eliminado ou corrigido. O autismo não funciona assim. Pessoas autistas têm características cerebrais distintas que afetam principalmente a comunicação, interação social e comportamento, sem que isso implique degradação ou degeneração neurológica. Essa distinção semântica não é apenas acadêmica, é política, pois sustenta uma visão de inclusão versus medicalização excessiva.
Afinal, o que é o autismo?
Classificação: doença, transtorno ou síndrome?
O autismo é oficialmente classificado como Transtorno do Espectro Autista (TEA), não como doença. A diferença importa. De acordo com as classificações internacionais:
Doença: alteração biológica que se manifesta por sintomas e causa enfermidade ou moléstia, geralmente com potencial para cura ou remissão.
Síndrome: conjunto de sinais e sintomas simultâneos, com causas ainda não completamente definidas.
Transtorno: condição de ordem psicológica e/ou mental que gera comprometimento na vida normal de uma pessoa, mas não necessariamente uma patologia a ser eliminada.
O TEA enquadra-se na terceira categoria. Pesquisadores da Universidade de Cambridge publicados na revista Nature reforçam que o autismo não é uma condição homogênea, mas um conjunto de diferentes perfis biológicos e de desenvolvimento. Isso significa que o autismo de uma criança diagnosticada aos 3 anos pode ser neurobiologicamente diferente do autismo de um adulto diagnosticado aos 35 anos.
Como o autismo se desenvolve no cérebro
Pessoas autistas têm estruturas e funcionamento cerebral distintos. As pesquisas indicam alterações em áreas relacionadas à comunicação social, processamento sensorial e comportamento. Diferentemente de muitas doenças, o cérebro autista não está “danificado”, mas organizado de forma diferente, com particularidades em como processa informações, particularmente sociais e sensoriais.
Um achado fundamental foram os estudos genéticos envolvendo mais de 45 mil pessoas autistas que revelaram que crianças diagnosticadas cedo (antes dos 6 anos) apresentam perfis genéticos típicos do autismo infantil. Já indivíduos diagnosticados após os 10 anos mostram maior propensão a problemas de saúde mental como depressão, com perfis genéticos que se aproximam mais de TDAH. Essa heterogeneidade sugere que diferentes mecanismos biológicos podem originar apresentações semelhantes de autismo, reforçando a complexidade dessa condição.
Diferenças entre cérebros autistas e não autistas
O cérebro autista processa informações de forma única. Pessoas com autismo frequentemente apresentam:
Hipersensibilidade sensorial: reações intensas a sons, luzes, texturas ou sabores que neurotípicos não perceberiam como desafiadores.
Padrões de pensamento concentrado: capacidade de hiperfoco profundo em tópicos de interesse, com absorção completa e perda de noção do tempo.
Dificuldades em comunicação social: interpretação literal de linguagem, desafios em contato visual e em compreender expressões faciais ou contexto social implícito.
Pensamento visual-espacial forte: muitos autistas pensam em imagens e padrões, em vez de palavras lineares.
Esses não são déficits em sentido absoluto, mas diferenças que exigem adaptação do ambiente neurotípico.
Os níveis (ou graus) de autismo
O DSM-5 classifica o autismo em três níveis de suporte, abandonando termos como “síndrome de Asperger” ou “autismo infantil”:
Nível 1 (Leve): necessidade de suporte mínimo. Dificuldade em iniciar interações sociais, inflexibilidade comportamental, mas capacidade de realizar muitas atividades independentemente.
Nível 2 (Moderado): necessidade de suporte substancial. Déficits graves em comunicação verbal e não verbal, dificuldades aparentes mesmo com apoio, limitação em iniciar interações.
Nível 3 (Severo): necessidade de suporte muito substancial. Déficits graves causam prejuízos funcionais significativos, extrema dificuldade em comunicação e mudanças de atividade.
Essa classificação reconhece que autismo não é doença e, como transtorno psicológico, é um espectro de necessidades de apoio.
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Características principais
Segundo o DSM-5, o diagnóstico de TEA requer déficits persistentes em:
Comunicação social: incluindo dificuldade em comunicação não verbal, dificuldade em ajustar comportamento para contextos sociais diferentes, redução de interesse em compartilhar emoções ou experiências com outros.
Comportamentos restritos e repetitivos: movimentos estereotipados (abanar as mãos, girar e andar na ponta dos pés), insistência em rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal, interesses restritos e intensos, reatividade aumentada ou reduzida a estímulos sensoriais.
Sintomas observáveis
Os sinais podem ser notados já nos primeiros meses de vida, embora o diagnóstico normalmente ocorra entre 2 e 3 anos. Incluem:
Atraso na fala ou uso repetitivo e ecolálico da linguagem;
Falta de contato visual ou resposta ao próprio nome;
Dificuldade em brincar imaginativamente ou de forma cooperativa;
Apego excessivo a rotinas, com reações intensas a mudanças;
Padrões de movimento repetitivos;
Reações extremas a estímulos sensoriais.
Diagnóstico
O diagnóstico de TEA é essencialmente clínico. Profissionais especializados (neurologistas, psiquiatras e neuropsicólogos) observam a criança, entrevistam pais e aplicam instrumentos específicos de avaliação padronizados. Não existe biomarcador específico ou teste de sangue que detecte autismo. O relato detalhado das famílias sobre desenvolvimento e comportamento é fundamental para uma avaliação precisa.
A identificação oportuna permite intervenções comportamentais e apoio educacional na idade mais precoce possível, aproveitando a neuroplasticidade cerebral do desenvolvimento infantil.
Autismo não tem cura, mas pode ser gerenciado com sucesso. O acompanhamento multidisciplinar costuma incluir:
Terapia comportamental (ABA): análise do comportamento aplicada, focada em desenvolver habilidades sociais e comunicativas.
Fonoaudiologia: para apoiar desenvolvimento de linguagem e comunicação.
Terapia ocupacional: para lidar com questões sensoriais e desenvolvimento de habilidades de vida diária.
Apoio educacional especializado: estratégias e recursos na escola para facilitar aprendizado.
Medicação (quando necessária): para gerenciar comorbidades como ansiedade, depressão ou TDAH, não para “curar” o autismo.
Não. Autismo não é uma doença e sim um transtorno psicológico, portanto, não tem cura. É uma condição do neurodesenvolvimento que acompanha a pessoa ao longo de toda a vida. O objetivo é apoio e desenvolvimento de habilidades adaptativas.
Sim. Muitos adultos recebem diagnóstico tardio, particularmente mulheres, cujas manifestações podem ser menos óbvias ou mascaradas socialmente. Diagnóstico em adultos segue os mesmos critérios do DSM-5 e pode melhorar significativamente a qualidade de vida e autoaceitação.
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