Vários mamíferos, como os ursos e esquilos, têm no DNA a capacidade de hibernar e sobreviver por meses enquanto dormem, sem comer ou se hidratar. Nesse período, o metabolismo do organismo desacelera, a temperatura corporal cai, e os músculos se preservam.
Ao despertarem, esses mesmos animais retomam as funções biológicas normais, mesmo após passarem por estados corporais semelhantes aos da diabetes e de doenças neurológicas.
Até onde se sabe, humanos não têm esse “superpoder”. Contudo, desbloqueá-lo poderia ser possível, segundo um estudo publicado na revista Science, nesta quinta-feira (31/7).
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O estudo detalha que pesquisadores da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, descobriram que seres humanos compartilham estruturas genéticas no DNA com a de animais hibernadores.
Quem comanda esse processo são as regiões próximas ao locus da massa gorda e obesidade, no gene conhecido como FTO. Eles regulam o uso de energia e influenciam a forma como o corpo ganha e queima gordura.
Assim, os cientistas acreditam que, embora os humanos não hibernem, eles tenham no DNA os genes que tornam isso possível. O que faltaria, portanto, seria encontrar os controles que ativam essa função latente e atualmente “desligada”.
Como o DNA regula a vida?
O DNA contém instruções que controlam o crescimento, o metabolismo e a reprodução de todos os seres vivos, de bactérias a seres humanos.
Genes são trechos do DNA que codificam proteínas, responsáveis por quase todas as funções vitais do corpo, como da digestão e da defesa imunológica. Eles funcionam como linhas de um grande manual de instruções sobre como as células devem operar.
Apesar das diferenças entre espécies, o DNA humano é quase 99% idêntico ao dos chimpanzés, por exemplo, e cerca de 60% igual ao das bananas.
Nem tudo que temos no nosso DNA é manifestado. O DNA pode ativar ou silenciar genes em resposta a estímulos ambientais específicos, como temperatura, alimentação ou exposição a toxinas.
Mudança no DNA permite hibernação
A equipe identificou pequenas regiões de DNA que não são genes, mas trechos reguladores. Eles influenciam a atividade de segmentos vizinhos, como maestros em uma orquestra. E, quando alteradas, essas regiões podem modificar o metabolismo dos animais.
“Quando você elimina um desses elementos – essa minúscula e aparentemente insignificante região do DNA –, a atividade de centenas de genes muda. É incrível”, explica Susan Steinwand, pesquisadora em neurobiologia e anatomia, além de primeira autora de um dos estudos.
Ao editar esses segmentos em camundongos, os pesquisadores observaram mudanças no peso, na resposta à fome e na capacidade de controlar a temperatura corporal. Em alguns casos, as mutações aceleraram o ganho de peso; em outros, tornaram os animais mais resistentes ao frio.
Essas descobertas mostram que regiões aparentemente inativas do DNA têm papel central na adaptação ao jejum, à obesidade e, possivelmente, à hibernação. A manipulação desses segmentos, portanto, pode oferecer caminhos para tratar doenças metabólicas humanas em testes futuros.
Rastros da hibernação no genoma
A pesquisa usou comparações genômicas entre espécies para rastrear padrões. Os cientistas buscaram sequências que mudaram pouco em milhões de anos, mas sofreram alterações recentes em animais que hibernam, como esquilos e marmotas.
Em seguida, a equipe analisou genes que mudam de comportamento durante o jejum. Esse processo induz respostas semelhantes à da hibernação, como economia de energia e regulação térmica, e os genes responsáveis por isso funcionam como centros de comando do metabolismo.
A comparação revelou que muitas regiões alteradas nos hibernadores se conectam a esses segmentos centrais e sugere que a hibernação surgiu da modificação de interruptores genéticos antigos, não da criação de genes.
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Urso-negro, também conhecido como baribal, é nativo da América do Norte
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Estudiosos afirmam que a espécie pode hibernar de 5 a 7 meses
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Nesse período, o metabolismo da espécie passa por profundas mudanças que, antes, eram desconhecidas
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Urso-pardo
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A espécie também passa pelo mesmo processo do urso-negro
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Eles não comem, não bebem água e se mexem muito pouco durante a hibernação
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Ajustes finos no código genético humano
A maioria das alterações genéticas detectadas não acrescenta funções ao organismo, mas “remove” restrições. Seria como soltar os freios de um sistema para deixá-lo flexível, pois, nos humanos, o “termostato” metabólico parece mais rígido.
“Os humanos já têm a estrutura genética”, disse Steinwand. “Só precisamos identificar os interruptores de controle para essas características de hibernação.” Ao aprender como, os pesquisadores também podem ajudar a conferir aos humanos uma resiliência semelhante.
Além disso, animais que hibernam suportam mudanças drásticas no corpo sem consequências permanentes. Eles evitam a atrofia muscular, resistem a lesões neurológicas e controlam o peso com precisão; por isso, voltam ao normal quando saem hibernação.
E essas características despertam o interesse médico. Compreender como os genes dos hibernadores funcionam pode ajudar no desenvolvimento de terapias contra doenças como diabetes, Alzheimer e condições relacionadas ao envelhecimento.
Possibilidades
Ainda segundo os autores do estudo, o corpo humano pode estar equipado com todos os elementos necessários para simular a hibernação. Resta aprender a operar esses mecanismos, ainda silenciosos na maioria das pessoas.
Animais que hibernam evitam danos comuns sofridos por humanos em condições extremas. Eles suportam quedas de temperatura, longos jejuns e variações de peso sem prejuízo à saúde. A hibernação, nesse contexto, representa um modelo de resiliência.
Os estados fisiológicos controlados também poderiam ser úteis para astronautas em viagens longas, pacientes em recuperação de traumas ou pessoas com doenças crônicas. A chave pode estar nos próprios genes. Agora, é preciso aprender a girá-la.
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