É ético clonar ou editar DNA de animais extintos? Entenda polêmica

A empresa norte-americana Colossal Biosciences ganhou atenção global ao prometer ressuscitar animais extintos como o mamute-lanoso e o lobo terrível. O plano combina clonagem, edição genética e reprodução assistida com o objetivo de reintroduzir essas criaturas em habitats modernos.

A proposta, porém, dividiu a comunidade científica entre o entusiasmo e o ceticismo. O uso dessas tecnologias em conservação de espécies levanta perguntas éticas e científicas profundas sobre os planos de “desextinção”.

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Para os cientistas ouvidos pelo Metrópoles, projetos como o da Colossal estão mais próximos do que alguns pesquisadores chamam de “espetáculo biotecnológico” do que de ações reais de conservação. Pedro Galante, cientista molecular do Hospital Sírio-Libanês, alerta que iniciativas como a da empresa norte-americana podem criar a falsa ideia de que a extinção é reversível.

Ele aponta que mais de US$ 200 milhões já foram captados para “desextinguir” o mamute, valor muito superior ao que parques nacionais recebem para conservar espécies ainda vivas.

“Isso é uma bala de prata tecnológica que desvia a atenção das causas reais da crise ambiental. Penar que podemos voltar atrás no tempo pode minimizar os impactos de nossas atitudes. Os efeitos da extinção humana ainda seguem existindo”, afirma Galante, que é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.

O pesquisador complementa: “O que a Colossal está fazendo tem um terço de propostas baseadas em ciência real, mas boa parte do que vemos é uma exploração econômica de espécies que têm apelo, que aparecem em filmes e estão em nosso imaginário, com promessas bastante exageradas do que eles de fato podem entregar.

Galante avalia que apenas seja possível fazer uma “quimera genômica”, que mistura partes do DNA de animais que desapareceram com parentes atuais. “Mesmo as técnicas de preservação deles, com úteros artificiais para reproduzir animais em cativeiro, que é louvável, tem pouco impacto no mundo real”, defende ele.

Como funciona o processo de desextinção da Colossal

Escolha de espécie-alvo: a Colossal trabalha com parte do material genético de várias ossadas de animais extintos — como dodôs, mamutes e lobos terríveis — e fazem a análise genômica do DNA daquelas espécies.
Espécies vivas como base genética: em seguida, os cientistas selecionam moléculas genéticas de animais modernos que sejam semelhantes genética e fisicamente com a espécie-alvo para criar seus híbridos.
Mapeamento de DNA paleogenético: eles extraem e analisam DNA de fósseis para identificar sequências genéticas específicas necessárias e possíveis de implantar para recriar traços originais semelhantes à espécie-alvo.
Usina de desenvolvimento embrionário: não apenas modificam geneticamente as células, mas também produzem embriões viáveis para inserção em óvulos e espermatozoides compatíveis de espécies do presente que são incubadas para gestar.
Observação em comunidade: depois de reproduzidas, as espécies vivem mas um tempo em isolamento até que seja possível criar comunidades maiores.

Foco deveria estar na conservação

O biólogo geneticista Fabrício Santos, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), avalia que o dinheiro investido nesses projetos ambiciosos poderia ser melhor aplicado em manter os habitats naturais e evitar mais perdas.

“Quando uma espécie desaparece na natureza, é sinal de que ela perdeu seu papel para o sistema ecológico. Na conservação ambiental, a meta é mitigar o que o ser humano causou de danos ao ambiente natural: poluição, destruição de habitats, caça, pesca, desmatamento, introdução de espécies exóticas. Isso é o que tem de ser combatido, não só abraçar os bichos, mas todo o meio-ambiente com todas as suas plantas, animais e microrganismos interagindo com o mínimo de impacto humano”, defende.

Santos cita como estratégias de sucesso deste tipo os esforços para conservar as baleias-jubarte, que quase desapareceram nos anos 1970. Neste momento, décadas antes do surgimento das possibilidades de edição genética, foi feito o combate à caça, campanhas informativas e o fomento do ecoturismo. Hoje há mais de 20 mil espécimes delas apenas no litoral brasileiro.

Riscos ecológicos e genéticos imprevisíveis

Um artigo escrito por pesquisadores da Colossal e publicado na sexta-feira (18/7) na revista Nature Reviews Biodiversity defende a estratégia da empresa de ir além da conservação e buscar “resgatar a genética original” dos animais.

Eles citam o pombo-rosa das Ilhas Maurício. A ave, que chegou a ter apenas dez indivíduos vivos, conta hoje com mais de 600 espécimes, após décadas de esforços de conservação. Apesar disso, com a reprodução restrita a vários animais aparentados, a genética dele continua gravemente comprometida. Se nada for feito, os cientistas estimam que a espécie poderá desaparecer nos próximos 50 a 100 anos.

Para a Colossal, seria preciso editar o DNA dos animais para evitar que doenças consigam eliminá-los totalmente. Entretanto, outros pesquisadores apontam que esta estratégia pode trazer riscos ecológicos ainda pouco compreendidos. Esses indivíduos modificados podem competir com espécies nativas, alterar dinâmicas tróficas ou até facilitar a disseminação de vírus adormecidos.

Galante ressalta que, ao manipular genes, é impossível prever todas as consequências. “Um único gene alterado pode influenciar várias funções animais. Não conseguimos simular o impacto completo de uma alteração genética em espécies reproduzidas. A rede de interações celulares é complexa e não está sob nosso controle”, aponta o especialista.

Veja animais extintos que a Colossal quer trazer de volta

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Primeiro grande projeto da Colossal foi a desextinção do lobo-terrível, Mas ele foi questionado pela comunidade científica

Colossal Biosciences/ Divulgação 2 de 5

Dodô é uma espécie extinta de ave da família dos pombos que era endêmica da ilha Maurício, no Oceano Índico, a leste de Madagascar

Divulgação/Colossal Biosciences3 de 5

O tigre-da-tasmânia foi o maior marsupial carnívoro dos tempos modernos

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O mamute-lanoso foi a última espécie de mamute que se adaptou às regiões mais a norte do planeta

Divulgação/Colossal Biosciences5 de 5

A colossal anunciou que tem planos de “trazer de volta” uma nova espécie, o moa, um avestruz gigante característico da Nova Zelândia. Ele desapareceu por volta do ano 1445, antes mesmo de Colombo chegar à América

Colossal/Divulgação

O que deveria ser conservado?

Fabrício Santos ressalta que “não se preserva uma espécie restaurando dois ou três indivíduos”. Para ele, a conservação deve promover populações funcionais em ecossistemas equilibrados, algo impossível de alcançar com clones isolados de espécies extintas há milênios ou mantidos em cativeiro.

Galante propõe uma reflexão ética sobre o limite da intervenção humana. “Talvez tenhamos obrigação moral de tentar reverter os danos que causamos, mas isso exige responsabilidade e análise profunda das consequências de cada decisão. Dependendo da espécie, ainda mais as que desapareceram há milênios, a gente vai ter que aceitar que erramos e carregar essa vergonha para tentar não fazer de novo”, diz.

Vácuo legal e urgência regulatória

Outro desafio está na falta de regulação específica. Um híbrido entre mamute e elefante seria considerado uma nova espécie? Teria proteção legal? Esses paradoxos jurídicos ainda não foram enfrentados. Hoje, qualquer reintrodução ocorreria sem marcos regulatórios claros e com alto risco de impacto ambiental.

Galante defende que a pergunta já não é mais se devemos regular, mas como. “A biotecnologia avançou mais rápido do que a capacidade das instituições de acompanhar os riscos éticos e ecológicos”, defende.

Todos os pesquisadores, mesmo os autores da Colossal em seu artigo, concordam que a lógica da reextinção pode gerar a ilusão de que não é necessário agir agora. Mas restaurar uma espécie é custoso, incerto e, muitas vezes, impossível. Preservar a biodiversidade original ainda é a estratégia mais segura e eficaz.

Restaurar espécies requer mais do que genes. É preciso ecossistemas viáveis, conhecimento profundo e responsabilidade pública. O futuro da conservação depende menos de milagres laboratoriais e mais da preservação do que ainda existe. A pergunta certa, portanto, talvez não seja se um dia poderemos ressuscitar um mamute, mas se devemos fazê-lo e para quê.

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